Assédio sexual: o crime que juízes desvalorizam e que as juízas dizem sofrer

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Poucos delitos estão mais na ordem do dia. Mas o parlamento voltou agora a recusar a criação do crime de assédio sexual, ignorando também recomendações do Conselho da Europa. Entre os principais opositores da existência do tipo criminal têm estado os juízes - mesmo se num inquérito recente as juízas se assumem, "em número elevado", vítimas de assédio.

“O piropo está criminalizado desde 2015 (…) Os gestos obscenos de cariz sexual já estão criminalizados. (…) O assédio sexual já está criminalizado.”

A certificação é da deputada do PS Cláudia Cruz Santos, no parlamento, a 2 de junho, e pode surpreender muita gente. Afinal, quando em 2015 o Código Penal foi alterado para incluir, no crime de “importunação sexual”, as “propostas de teor sexual”, houve um debate público aceso sobre se aquilo a que se dava o nome de “piropos” – comentários como “oh boa, esse rabo, essas pernas, o que eu te fazia” que, como em 2017 dizia uma jovem de 17 anos ao DN, ouvia desde os 12 e a faziam “ter medo de sair à rua sozinha” – passavam ou não a ser crime.

Contra essa possibilidade tinha-se de resto pronunciado a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a qual num parecer da época – que paradoxalmente a deputada socialista citou nesta sua intervenção – estatuiu: “Nunca se poderá criminalizar condutas de assédio sexual indesejadas que não ultrapassem a grosseria ou má-educação.”

Esta posição foi interpretada como uma recusa dos magistrados de conferir dignidade penal à generalidade do assédio verbal de rua, como oito anos antes a mesma agremiação sindical tinha feito, também em parecer, em relação à proposta de criminalização, na reforma penal de 2007, do constrangimento a contactos sexuais indesejados – vulgo apalpão e condutas quejandas.

Nessa altura, os juízes tinham reputado de “porventura excessivo” penalizar como crime aquilo que consideravam “situações desagradáveis, mas de duvidosa gravidade”, como “os ‘encostos’ nos transportes públicos”. Atos em relação aos quais, dizia então ao DN um dos autores do documento, existiria “uma certa aceitação cultural”.

Esta visão foi contraditada pelo Tribunal Constitucional (TC) em acórdão de fevereiro 2013, no qual se conclui que “o bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em causa [a importunação sexual na vertente “constrangimento a contacto sexual”] é inquestionavelmente dotado de dignidade bastante para ser merecedor de tutela penal”, mas permanece em parte dos penalistas. E, depreende-se, dos magistrados – redobradamente decerto no que respeita ao assédio sexual sem contacto físico, como é o caso dos “piropos”.

Seria pois muito útil que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses tivesse, no seu parecer de 2015, esclarecido quais serão então, no seu entender, as condutas de “assédio [verbal ou não verbal] indesejado” que ultrapassam “a grosseria e a má educação” e que vê como merecedoras de incriminação. Infelizmente não o fez. Nem é conhecida até hoje qualquer decisão judicial que ajude a desfazer a dúvida. Na verdade, o que é periodicamente noticiado – com exemplos mais à frente neste texto – são decisões que negam dignidade penal a comentários de teor sexual e até ao constrangimento a contactos de teor sexual.

A este propósito, a deputada do PSD Carla Rodrigues, que coordenou o grupo de trabalho do qual resultou em 2015 a criminalização das propostas de teor sexual, verberava, em entrevista à TSF de setembro de 2020, os juízes que “não veem dignidade penal numa proposta de teor sexual que é formulada na rua ou num ambiente de trabalho a uma mulher”. Exigindo: “É preciso que também os tribunais tenham consciência de que este é um crime grave. Que façam o seu trabalho. Os deputados fizeram o seu trabalho, legislaram e introduziram esta alteração no Código Penal em boa hora. Agora é preciso que os tribunais apliquem – e apliquem bem – esta lei.”

“Há um vazio legal no que respeita à punição do assédio sexual”

Curiosamente, em maio de 2022, e na sequência das notícias do DN sobre denúncias de assédio sexual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o presidente da Associação Sindical de Juízes, Manuel Soares, que se tem vindo a notabilizar na crítica àquilo que, referindo-se ao movimento feminista, qualifica como “movimentos ideológicos com agendas sectárias e intolerantes”, deplorava, na sua coluna no Público, a inexistência de mecanismos que incentivem as vítimas de assédio “a queixarem-se e que as apoiem”. E concluía: “O problema é que, como se sabe, as vítimas de assédio sexual raramente se queixam.”

Anunciou então Manuel Soares que estava a decorrer um inquérito entre os magistrados para perceber a dimensão do fenómeno na judicatura.

Um ano depois, o juiz desembargador vem dar notícia, mais uma vez na sua coluna no Público, de resultados preliminares “muito preocupantes”: “Há um número elevado de juízes (sobretudo mulheres) que assinalaram ter sido vítimas de assédio sexual por parte de colegas com funções de autoridade (inspetores judiciais, presidentes de tribunais e formadores, nomeadamente) e que disseram não ter reportado o caso aos órgãos próprios por receio das consequências, vergonha ou inexistência de canais de denúncia.” E rematava: “Ficarmos sentados, à espera de uma denúncia que sabemos ser altamente improvável, sobre situações que adivinhamos existirem, mas a que preferimos fechar os olhos, por comodismo e inércia, não está certo. Isto tudo tem de levar uma valente vassourada.”

Que poderia ser tal vassourada o dirigente sindical não disse. Mas há quem tenha uma ideia: a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), presidida pela juíza conselheira Teresa Féria, defende há muito, como explicou ao Público em abril a magistrada do Ministério Público e associada da APMJ Rita Mota Sousa, a criação de “um tipo penal de assédio sexual”. Considerando que existe ainda “um vazio legal no que diz respeito à punição do assédio sexual”, e que “na fase de evolução em que nos encontramos, já não se justifica que esse vazio ainda exista”, esta procuradora, autora do livro Introdução às teorias feministas do Direito (2015), considera que a criação de um tipo criminal com esse título não só protegeria melhor as vítimas como teria “um efeito pedagógico para a comunidade, porque traça limites e fronteiras”.

Era isso exatamente que estava em causa no debate parlamentar referido no início deste texto, e que ocorreu a 2 de junho: a criação de um tipo criminal intitulado assédio sexual, proposta pelo BE e PAN, substituindo o de “importunação sexual”, artigo 170º do Código Penal).

O BE queria que às “propostas de teor sexual” constantes no atual tipo criminal fossem adicionados os comentários de teor sexual, “verbais ou não verbais”, e que aos atos exibicionistas que integram também o crime existente fosse aditado o mesmo tipo de situação mas por via digital (quando alguém recebe imagens sexuais explícitas).

PAN propunha aumentar a moldura penal do crime de um para dois anos; ambos os partidos queriam transformá-lo em crime público. Também o Chega apresentou um projeto no sentido de aumentar a moldura penal (para os mesmos dois anos), agravando o crime de importunação sexual quando os factos “forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos” (a importunação sexual tem hoje moldura penal agravada, até três anos, quando seja praticada sobre menores de 14, ou seja, quando se enquadra no tipo criminal “abuso sexual de menores”. De resto, não prevê agravação especial quando a vítima tem entre 14 e 16, ou entre 14 e 18 anos; a agravação pode ocorrer, nos termos de uma alteração efetuada em 2019 no artigo 177º do CP, “se a vítima for pessoa especialmente vulnerável, em razão da idade”).

Todas as propostas foram chumbadas com os votos contra de PS e PSD, os quais em resumo asseveram que os tipos criminais já existentes, nomeadamente o de importunação sexual, cobrem todas as situações relativas ao assédio sexual que merecem tutela penal, e não faz sentido aumentar penas.

País fica “aquém” na punição, diz Conselho da Europa

Esta posição dos dois principais partidos não se limita a ignorar aquilo que em 2020 a ex deputada Carla Rodrigues reconhecia – que os tribunais se mostram de um modo geral relutantes em aplicar a lei, procurando na sua redação inconsistências ou insuficiências, como a de falar apenas de “propostas sexuais”, o que permite que a maioria dos comentários de teor sexual possa ser considerado como não abrangido pelo tipo criminal.

Tem também a virtualidade de fazer tábua rasa das exigências do Conselho da Europa quando à penalização do assédio sexual.

Recorde-se que, por via da ratificação, em 2013, da Convenção de Istambul/Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, Portugal está obrigado a punir o assédio sexual, descrito no artigo 40º deste tratado como “qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo”.

Em sucessivos relatórios, o grupo de peritos do Conselho da Europa que tem como função avaliar o cumprimento da Convenção – o GREVIO/ Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence – sublinha a necessidade de o país alterar a lei.

“O crime de assédio sexual está definido no artigo 170º do Código Penal Português como sendo a conduta que importuna a vítima “através de atos exibicionistas, formulação de propostas sexuais ou constrangimento a contactos de natureza sexual””, lê-se no último relatório, de 2019“O GREVIO considera esta formulação particularmente restritiva em comparação com o objetivo do artigo 40º da Convenção de Istambul, que é o de penalizar com sanções criminais ou outras qualquer conduta sexual verbal, não verbal ou física indesejada pela vítima independentemente de se qualificar como “exibicionista” ou como “proposta”.

Assim, prosseguem os peritos, “a conduta verbal que qualifica o delito tanto pode ser constituída por palavras ou sons, como piadas, perguntas ou comentários, expressos oralmente ou por escrito. As condutas não verbais, por outro lado, incluem quaisquer expressões ou comunicações da parte do perpetrador que não envolvem palavras ou sons, por exemplo expressões faciais, movimentos manuais ou símbolos.” Para concluírem: “A corrente formulação do artigo 170º do CP fica aquém do desígnio do artigo 40º da Convenção, que é o de descrever um padrão de comportamento cujos elementos individuais, se encarados isoladamente, podem não resultar necessariamente numa sanção.”

Em junho 2022, o GREVIO reforçou este apelo a Portugal no sentido de alterar o CP para o fazer coincidir com o artigo 40º.

Os peritos também chamam a atenção para a necessidade de conhecimento sobre o fenómeno para além dos inquéritos sobre assédio sexual no âmbito laboral (desde 2009 que o Código de Trabalho proíbe o assédio sexual, considerando-o uma contraordenação “muito grave”; a redação do artigo em causa é surpreendentemente próxima da da Convenção de Istambul: “Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”).

Lei não diz mas é como se dissesse

Há porém quem, como a deputada Mónica Quintela, do PSD, contraponha que não há necessidade de alterar o Código Penal, porque mesmo o que lá não está escrito passa a estar por via da sua interpretação “à luz da Convenção”.

Assim, diz a social-democrata, citando a juíza do Supremo Tribunal Clara Sottomayor, “o conceito de propostas de teor sexual constante no artigo 170º deve ser interpretado à luz do conceito de violência de género da CI, abrangendo não só convites sexuais não desejados, como também palavras, comentários ou expressões humilhantes e degradantes sobre o corpo das mulheres ou que se referem a atos sexuais desejados pelo assediador, ainda que seja usada linguagem metafórica ou simbólica, mas cujo significado sexual é percetível pela generalidade das pessoas.”

Nesta visão concorre, explicou Quintela no debate parlamentar, o ex juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque, ao considerar incluírem-se no mesmo tipo legal (o artigo 170º) “palavras ou sons exprimidos e comunicados pelo agente tais como piadas, considerações, questões exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações que não envolvam palavras ou sons como por exemplo expressões faciais, movimentos.”

Posto isto, concluiu a deputada, também os tribunais “têm entendido que o crime de importunação sexual visa proteger a liberdade sexual de outra pessoa, com especial incidência no facto de não ter de suportar condutas que agridam ou infrinjam a esfera sexual dessa pessoa”, pelo que “afigura-se que as alterações propostas [nos projetos] estão já contempladas na lei”.

Na verdade, como já referido, se há algo que ressalta da jurisprudência portuguesa em matéria de assédio sexual – nomeadamente no que respeita ao crime de importunação sexual, mas também a outros que cabem na definição de assédio, como a coação sexual (artigo 163º do CP, que pune com um a oito anos de prisão “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir” constrange outra pessoa “a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo”) – é que esta sistematicamente desvaloriza esse delito, a não ser que as vítimas sejam menores de 14, caso em que os atos em causa cabem no tipo criminal “abuso sexual de menores”.

Aliás, apesar de o número de inquéritos por importunação sexual ter vindo a aumentar nos últimos anos, verificando-se, entre 2016 e 2019, um aumento de 30,7% (de 733 para 958) – o que deverá corresponder a uma maior consciencialização do valor da liberdade sexual e da existência deste tipo criminal -, pouco mais de 10% resultam em acusação, e, tanto quando se conhece publicamente, são raríssimas as decisões que o punem.

O crime que não é realmente crime

Há aliás casos caricaturais na demonstração da relutância da justiça portuguesa em punir a importunação sexual quando está em causa uma vítima com 14 anos ou mais.

Como o de uma menina de 14 anos a quem um homem, quando ela ia a passar para a escola, exibiu pelo menos duas vezes o pénis. Numa decisão de 2014, o Tribunal da Relação de Évora, apesar de dar os factos como provados, entendeu absolvê-lo dos dois crimes de importunação sexual de que vinha acusado.

O aspeto caricatural deriva de esta menina, chamemos-lhe Diana, fazer parte de um grupo de vítimas entre os 10 e os 14 anos às quais o arguido tinha, provou-se, exibido o falo repetidamente ao longo de 2010 e 2011. Tendo o acórdão confirmado a condenação no que respeitava aos atos dirigidos às meninas dos 10 aos 13 – incluindo Diana, enquanto não fez 14 anos, no grupo das vítimas do crime -, explica por que motivo a mesma pessoa, perante os mesmos factos, sofre um dano até aos 13 anos que inexiste mal sopra as velas dos 14.

“A exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, ereto ou não, perante vítima menor de 14 anos, a quem se causa deste modo receio, susto, intimidação e perturbação (…) atinge a liberdade da vítima na vertente da sua autodeterminação sexual e é conduta perturbadora do desenvolvimento livre da sexualidade da menor atingida”, argumentam as duas magistradas que assinam a decisão. “Já relativamente a vítima de maior idade (…) em que não está em causa a tutela do desenvolvimento livre da personalidade sexual mas apenas o da liberdade sexual, exigir-se-á a comprovação de factos complementares, dos quais resulte que o ato exibicionista representou, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de ato sexual que ofendesse a sua liberdade sexual.”

Conclui-se assim que para as magistradas – e para vários penalistas, alguns deles juízes, que citam para consubstanciar a decisão (como a juíza desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, que em 2007 se pronunciou pela “desnecessidade da incriminação da conduta relativa à prática de atos de caráter exibicionista quando a vítima é pessoa adulta”) – a confrontação indesejada com a exibição de um órgão sexual por um adulto, que no caso de menores de 14 o acórdão diz ter resultado em ficarem “assustadas, receosas, intimidadas, perturbadas e constrangidas com as atuações do arguido”, não é, para alguém a partir dos 14 anos, violência que chegue, não merecendo tutela penal.

O corpo das mulheres como “propriedade pública”

Igualmente desmerecedor de tutela penal, segundo uma juíza de instrução da comarca de Évora numa decisão de 2011, é o comportamento de um homem que sistematicamente se roçava nas nádegas de uma colega quando esta estava a pôr e tirar loiça da máquina (trabalhavam num restaurante) e lhe mexia no corpo apesar de esta protestar e lhe pedir para não o fazer.

Para esta magistrada, não estava preenchido o tipo criminal “importunação sexual” porque este fala de “constranger” e ela não via constrangimento algum: “O constrangimento da vítima, necessário ao preenchimento do ilícito típico, pressupõe coação (isto é, uma imposição, uma forma de pressão que vença a oposição da vítima, por mínima que seja), algo mais de que a simples sujeição a um contacto inesperado.” E também esta juíza cita, em concordância, a desembargadora Maria do Carmo Silva Dias: “A instantaneidade e surpresa do contacto de natureza sexual afasta por um lado a relevância desse contacto e, por outro, afasta a própria noção de constrangimento.”” Em resumo, para estas duas juízas, se se obrigar alguém a contacto sexual apanhando a pessoa de surpresa e não lhe dando tempo para “resistir”, não haverá crime.

Outro tipo de abordagem escolheu um juiz de instrução de Viana do Castelo para negar natureza criminal ao ato de beijar à força, na face e na boca, uma jovem de 21 anos.

O caso analisado ocorreu em julho de 2015 (quando a Convenção de Istambul já vigorava no ordenamento português há quase um ano), e diz respeito a um trabalhador de um serviço municipal da cidade do Minho que, nas instalações desse mesmo serviço, agarrou e beijou, primeiro na face e depois na boca, a dita jovem.

Acusado de coação sexual pelo Ministério Público, que considerou (seguindo a opinião por exemplo de Pinto de Albuquerque) ser um beijo na boca um “ato sexual de relevo”, o homem foi em 2016 poupado a julgamento por um juiz de instrução. Malgrado reconhecer ter existido violência e tratar-se de “um ato socialmente inaceitável”, o magistrado considerou que não havia hipótese de um tribunal ver crime na conduta em causa.

O argumentário passou por negar aos beijos o estatuto de “atos sexuais de relevo”. Citando o penalista Jorge Figueiredo Dias, o juiz argumentou ser de excluir do ato sexual de relevo não apenas os atos “insignificantes ou bagatelares”, mas também aqueles que não representem “entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima” (“atos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima”).

Já o crime de importunação sexual – criado para, precisamente, punir o constrangimento a contactos de natureza sexual que não sejam “atos sexuais de relevo” (definição que inclui todos os atos sexuais mais gravosos, à exceção da penetração) – nem sequer foi contemplado pelo magistrado; é como se não existisse. Isso mesmo frisou o Tribunal da Relação de Guimarães, para o qual o MP recorreu da decisão do juiz de instrução, e que em 2017 anulou a decisão deste, ordenando que o homem fosse a julgamento, já que das duas uma: ou estava em causa um crime de coação sexual ou um crime de importunação sexual.

Um aspeto curioso deste processo é o facto de nenhum dos intervenientes judiciais – nem juiz de instrução, nem MP, nem Relação – ter feito menção à Convenção de Istambul, quanto mais à “leitura da lei à luz da mesma”.

Na verdade, constata-se, é como se, em várias destas decisões, nem o crime de importunação sexual fosse um crime a sério nem Portugal fosse signatário de um tratado internacional contra todas as formas de violência sobre as mulheres que tem, como advertiu a deputada Mónica Quintela no debate parlamentar, aplicação direta no nosso ordenamento jurídico.

Não se deve pois estranhar que as vítimas de assédio se queixem pouco ou nada. Ou que, como dizia em 2017 ao DN Filipa Moreira, então com 19 anos, concluam que serem vítimas é uma inevitabilidade, uma natureza: “Não me lembro de existir sem ser assediada. E não tenho uma mulher à minha volta que nunca o tenha sido. Parece que faz parte. É uma intrusão, uma agressão tal que nem percebo como é possível, mas começamos a internalizar essa “normalidade’ muito cedo. Infelizmente a sociedade está criada assim, o corpo das mulheres é propriedade pública.”

Fonte: dn.pt

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