Fátima Mata-Mouros, primeira juíza a pertencer ao Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), votou, em 2019, contra o acórdão do Tribunal Constitucional invocado pelo juiz Ivo Rosa para considerar prescrito crimes de corrupção no processo Operação Marquês.
Fátima Mata-Mouros, que estreou o TCIC quando este foi criado em 1999, fez, em 06 de fevereiro de 2019, declaração de voto de vencida do acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que conclui, em sede de recurso, e citando penalistas, que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem.
Ou seja, em termos mais simples, que o prazo de prescrição do crime de corrupção começa a contar quando é feita uma promessa de vantagem e não com a entrega de dinheiro ao longo do tempo ou de forma continuada.
No acórdão, que teve como relator Cláudio Monteiro e os votos favoráveis de José Teles Pereira e João Caupers (atual presidente do TC), este tribunal superior deu razão a um recurso a contestar a forma de contagem do prazo de prescrição da corrupção ativa, decidindo “julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal (…) quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem”.
“Em definitivo (…) o bem jurídico protegido no crime de corrupção ativa é violado com a promessa de entrega da vantagem indevida e não necessariamente com a entrega dessa vantagem, o princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29, nº1 e 3, da Constituição, encontra-se irremediavelmente comprometido pela adoção da interpretação normativa (…) segundo a qual o início do prazo de prescrição do crime de corrupção ativa deve ser retardado para o momento da entrega da coisa indevida, em detrimento do início da sua contagem com a promessa de entrega”, lê-se no acórdão.
Este acórdão do TC mereceu a discordância de Fátima Mata-Mouros, desde logo, por a decisão “representar uma inflexão do entendimento de há muito pacífico na jurisprudência (portuguesa), segundo o qual não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correção de eventuais interpretações, tidas por erróneas, efetuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade”.
“Discordo ainda da decisão porque através dela o TC exorbitou a sua jurisdição, constitucionalmente definida”, fundamentou ainda a primeira juíza do TCIC, o chamado “Ticão”, onde presentemente exercem funções dois juízes: Carlos Alexandre e Ivo Rosa.
No voto de vencida, Fátima Mata-Mouros discorda da fundamentação do acórdão subscrito por Claúdio Monteiro, José Teles e Joao Caupers, considerando que estes conselheiros do TC para chegarem à decisão em causa concluíram que se “estava perante um conteúdo inovatório da lei, isto é, `lei nova´ jurisprudencialmente criada e nessa medida violadora do princípio da legalidade”.
“Todavia, só foi possível concluir que estava perante um conteúdo normativo inovatório depois de ter fixado qual o sentido `correto´ dos conceitos usados nos preceitos legais do Código Penal convocados para dirimir a questão de direito que era colocada ao tribunal recorrido (TC)”, adianta Fátima Mata-Mouros.
No entender desta antiga juíza do TCIC, esta decisão do TC “representa um desvio ao entendimento que vem sendo adotado pelo TC no controlo de constitucionalidade com referência ao princípio da legalidade, na dimensão de tipicidade penal”.
A juíza lembra a este propósito que, de acordo com o artigo 221 da Constituição, o TC é apenas “o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”.
“Ao decidir esta questão do modo como decidiu, a maioria sobrepôs o seu entendimento dos factos e do Direito ao adotado no tribunal recorrido. Agiu como se o TC tivesse competência qualificada em matéria de interpretação da lei ordinária, esvaziando totalmente a competência dos tribunais judiciais de interpretação do direito infraconstitucional”, refere ainda Fátima Mata-Mouros.
Desta forma – enfatiza a juíza — o acórdão do TC “desfigurou a sua função no quadro da repartição de competências entre tribunais, designadamente entre o TC e as demais ordens jurisdicionais, transformando-se numa `quarta instância’, que não se enquadra nas competências próprias que a Constituição lhe reserva.
“Não cabe ao TC definir qual a interpretação do direito ordinário que deve ser seguida pelas ordens jurisdicionais competentes. A competência específica do TC é a interpretação da Constituição. Pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito ordinário”, salienta Fátima Mata-Mouros.
Por último, a juíza alerta que “o desvirtuamento das funções do TC, para além de violar o princípio da conformidade funcional das competências do TC, tem um efeito expansivo que não pode ser encorajado. A confusão entre o controlo da conformidade constitucional das normas aplicadas e o contencioso de decisões judiciais pretensamente violadoras da Lei Fundamental”.
Em sua opinião, isso “alimenta o recurso à jurisdição constitucional a pretexto de falsas questões de constitucionalidade que, apesar de inexistentes, permitem o protelamento das decisões judiciais relativas a verdadeiros atentados à Constituição, com custos irreparáveis para o prestígio da Justiça e do Estado de Direito”.
Fátima Mata-Mouros foi a primeira juíza a integrar o TCIC, criado em 1999, tendo deixado de exercer funções no “Ticão” em 2005.
Fonte: dn.pt