Ciganas com um pé na tradição e outro na universidade

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Mulheres ciganas e a estudar no ensino superior foi o ponto de partida da reportagem do DN, em setembro de 2017. A Priscilla terminou o curso de direito e as outras cinco estão a finalizar. Têm idades e experiências de vidas diferentes, comungam o gosto pelos estudos e o respeito pela cultura da etnia. Assim entende a integração. Hoje republicamos essa reportagem.

Priscila e Sónia têm um sonho: ter um curso superior. Mas enquanto Priscila seguiu o percurso regular e está a concluir a licenciatura em Direito, Sónia deixou a escola aos 9 anos, casou aos 15 e teve a primeira filha aos 16. Voltou aos estudos no ano passado para se preparar para os exames do regime para os alunos com mais de 23 anos e vai iniciar o curso de Educação Social. Duas mulheres ciganas com muito em comum – desde logo o respeito pelas tradições da etnia, mas com perspetivas e rumos diferentes. “Casar? Não quero falar disso, estou concentrada nos estudos”, responde Priscila. Um percurso diferente de Sónia: “Chegava-se ao 4.º ano e acabava-se a escola. Os meus pais trabalhavam na feira e eu tinha de ficar em casa a tratar dos meus irmãos. Conheci o meu marido aos 15 . Juntámo-nos e tivemos a primeira filha.”

Conheceram-se no âmbito do programa OPRE, que começou como projeto associativo e se transformou numa medida política o ano passado, para incentivar a comunidade cigana a tirar um curso superior. Passaram de oito para 24 bolsas de estudo e, este ano, concedem 30. As candidaturas começaram na quinta-feira. Cada aluno tem 1 500 euros anuais, verba a cargo dos gestores da bolsa, que pagam diretamente as despesas, como as propinas.

Priscila Sá tem 20 anos e será uma das primeiras ciganas a licenciar-se – há outra finalista em Lisboa em Sociologia. Os ativistas da comunidade só conhecem mais uma cigana com um curso superior, por isso, esperam multiplicar os casos de sucesso com o OPRE . “Só no programa conheci mulheres ciganas a estudar, porque é complicado. Muita gente não quer seguir, outras os pais não deixam, há crenças de que não é seguro. Há também a questão do casamento, na escola há a possibilidade de conhecerem alguém que não seja de etnia. E há quem pense que estudar é um desperdício de tempo, que “eu devia estar casada e com filhos”. Os que apoiam são os que têm mente mais aberta.”

Priscila pensa nas amigas de infância para chegar à conclusão de que todas estão casadas e com filhos e brinca: “Já não tenho amigas”. Conquistou outras na Universidade Lusófona, no Porto, onde estuda e todos sabem que é cigana. “Sempre souberam, quem é da zona do Porto percebe pelo sotaque, eles têm um sotaque mais carregado”. Se sentiu discriminação, foi pela positiva. Diz que tem tido a colaboração de professores e colegas, também é apoiada pela ação social e é bolseira do OPRE desde o ano passado. Tem ouvido um ou outro comentário preconceituoso, aos quais reage de forma positiva, por exemplo, quando se discutem matérias de criminalidade. “Brincam: “Cuidado com o cigano.” Depois, olham para mim e dizem: “Sem ofensa”.”

Os pais de Priscila sempre entenderam que a educação é a chave de sucesso. “A minha mãe quis estudar e não foi possível, então, criou-me de outra forma. E o meu pai [quem a criou não o biológico]sempre me incentivou, às vezes parece que sabe mais de Direito do que eu. Vende carros e lida com advogados, sabe da prática e eu sei de teoria, somos uma boa dupla. Desde que me conheço como gente que quero ser advogada”, conta. Tem dois irmãos, de 2 e 4 anos respetivamente, que terão o mesmo percurso se o entenderem.

A família vive em Francelos, Vila Nova de Gaia, onde há outros ciganos mas não tantos como no bairro dos avós. São feirantes, incluindo os pais mesmo que nem sempre tenham exercido a atividade, e passaram-lhe o bicho. “Nas férias trabalho nas feiras com a minha mãe, gosto muito de ajudar a montar as coisas, de interagir com as pessoas e de toda aquela agitação.”

Priscila sugere vir à entrevista com o traje académico. Vem maquilhada, com os longos cabelos, características das mulheres ciganas. Chega acompanhada de um tio, ela está “habituada” à vigilância. Acha natural, como natural entende não sair sozinha à noite, muito menos para uma discoteca. “Saio com os meus pais, é um casal novo e fixe, gostam de se divertir”. Reconhece que os rapazes têm mais facilidade. “Podem fazer tudo, é tudo mais fácil para os homens, acontece na sociedade em geral”.

Nunca chumbou e espera manter a folha limpa até ao fim dos estudos, concluir Direito este ano letivo e estagiar num escritório de advogados. E já tem patrono, “um dos melhores do Porto”, assegura. Quer especializar-se em criminologia, esperando não ter mais dificuldades por ser cigana. “Um advogado é um profissional independente, penso que não terei problemas se for boa naquilo que faço”. A sua comunidade terá um lugar especial. “Vou ajudar em tudo o que puder, tem-me apoiado”.

Tirar as “crianças ciganas do beco”

Sónia Prudêncio, 30 anos, sempre gostou de estudar, também nunca chumbou, mas foi obrigada a deixar a escola aos 9 anos. “Os meus pais tinham muitos filhos, eu era a menina mais velha, tinha de ficar a cuidar dos meus irmãos quando eles iam à feira”. Conheceu o marido no noivado de um primo, tinha ela 15 anos e ele 22, namoraram “um tempo” e juntaram-se. “Não foi uma escolha da família, nunca houve compromisso [os pais combinarem o casamentos dos filhos], foi um namoro de adolescentes normal”.

Um companheiro com quem tem inteira cumplicidade, incluindo nos estudos. Ele é o Bruno Prudêncio, tirou o 12. º ano, é assistente operacional na câmara e vai entrar com ela no 1.º ano de Educação Social no Instituto Politécnico do Porto, no curso noturno, enquanto que ela frequentará o diurno.

Cabelos longos, não deixou que a maternidade lhe descurasse a apresentação. Sónia sorri muito ao falar no voltar à escola e na esperança de melhores dias. “Casámos e tivemos a nossa filha tinha eu 16 [ia fazer 17], nasceu com um problema de pele, o que exige mais cuidados. Estivemos um tempo estagnados e, ao fim de dois anos, o meu marido começou a estudar à noite, tirou o 9.º ano, depois o 12.º, tinha 28 anos quando acabou. Eu cuidava das filhas e envolvi-me em atividades ligadas à comunidade cigana. Quando surgiu esta oportunidade não hesitei. Elas estavam mais crescidas, a mais nova entrara na escola , tinha uma vida mais independente e decidi ir atrás do meu sonho.”

Contou esse sonho num programa televisivo, a que assistia Bruno Gonçalves (ver entrevista). O dirigente associativo enviou-lhe uma mensagem e explicou-lhe que não era preciso voltar ao ensino básico para chegar à universidade, falou-lhe no programa OPRE. Teria que se inscrever nas unidades curriculares para se preparar para o exame de acesso ao ensino superior dos mais de 23 anos, o que fez com sucesso. “Apesar de não estar na escola, sempre fui uma pessoa interessada em ir mais além. E graças a Deus consegui. Voltar a estudar não é fácil, ainda por cima só com o 4.º ano de escolaridade, mas quando se tem vontade faz-se tudo”.

As filhas, a Bruna de 12 anos, e a Alaíde de 8, seguem a conversa. É a Bruna quem responde quando lhe perguntamos o que pensam dos pais voltarem à escola. “Dá-nos mais força para estudar”. Ela quer ser cientista em Biologia, a irmã, professora de ginástica. “Somos todos estudantes”, comenta a mãe.

Não esquece o dia em que voltou à sala de aula. “Senti um grande orgulho, também o orgulho da minha comunidade, apesar de todas as dificuldades, cheguei lá, é um feito extraordinário, e tenho-me sentido muito acarinhada.” No primeiro dia, sentou-se a um cantinho, receosa mas também para não dar muito nas vistas. “Os meus colegas chamaram-me logo para o pé deles, estão sempre a puxar por mim, nos grupos de estudo e em tudo, os meus professores disponibilizam todos os meios.”

O pior são os transportes, já que vive no bairro social do Baguim do Monte, em Gondomar, e estuda na cidade do Porto. Um bairro onde teve sérias dificuldades de integração. “Sinceramente, não sei quem ficou mais chocado se quem cá morava ou eu. Antes morava num bairro na Maia, com ciganos e não ciganos. Aqui não havia ciganos, veio a minha e mais duas famílias ciganas. Até fizeram uma abaixo-assinado para não virmos. Senti muito racismo.”

Aparentemente, essa fase passou. Sónia e as filhas são saudadas por todos. A família Prudêncio faz a diferença não só entre a comunidade cigana como entre a população local. Vivem numa casa social, que têm vindo a melhorar, os livros são mesmo para estudar e a escola é uma oportunidade. Mas, mais que ser um exemplo, querem ajudar os outros a fazer o mesmo. “As crianças são o bem mais precioso na nossa comunidade, daí a minha paixão por este curso. Quero motivá-las, tirá-las do beco, mostrar que há horizontes e, trabalhar também com os pais, desmistificar a ideia de que os ciganos não são capazes.”

O programa OPRE enquadra-se na Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, dando continuidade ao projeto Opré Chavalé, promovido, no ano letivo 2015/16, pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, em parceria com a Associação Letras Nómadas. O ano letivo passado passou a ser desenvolvido pelo Alto Comissariado para as Migrações em parceria com a Associação Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens.

Animação socioeducativa em maioria

Marisa, Cheila e Tânia vivem na Figueira da Foz e têm tido trabalhos temporários na área da mediação na comunidade. São mulheres vistosas e bem-dispostas que se preparam para iniciar o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra, a licenciatura que tem mais estudantes do programa, seis no total. Candidataram-se nos + de 23, estão entusiasmadas com o ensino superior, revelam experiências de vida diferentes, garantem que lutam diariamente contra o preconceito, que nas associações que dinamizam recebem telefonemas a quem recusaram emprego devido à sua etnia. O curso é para trabalhar com a comunidade e mostrar-lhes que são capazes. Também querem mostrar “à sociedade maioritária” que têm de “valer pelo que fazem e não por estereótipos”.

Os 24 bolseiros do ano passado, 13 raparigas e 11 rapazes – entretanto, desistiram dois -, distribuem-se, ainda, pelas áreas de serviço social (4), Educação Social (5), Sociologia (1), Psicologia (1), Direito (3), Fotografia (1), Desporto (1), Automação Naval (1) e Qualidade Alimentar (1), oriundos de 18 concelhos e distribuídos por 17 instituições de ensino. Neste primeiro ano, a taxa de aprovações foi de 71%, que sobe para 77 % no caso do sexo feminino.

Marisa Oliveira, 38 anos, é loira, não parece portuguesa nem cigana. Conta que o senhorio só conheceu o marido três meses depois de lhes alugar a casa e de como a “grande” amizade que entretanto fizera como uma vizinha se desmoronou no dia em que a mãe a visitou, imagina ela que devido às saias compridas que a matriarca usa. A mesma pessoa a quem uma mulher alugou casa, sabendo que era cigana e que respondeu perante as preocupações de Marisa. “Qual é o problema, desde que paguem a renda e mantenham tudo em condições…” Também há reações positivas.

Marisa é mediadora do programa OPRE e vice-presidente da Associação Ribalta Ambição, que promove a igualdade de género nas comunidades ciganas. Fez mediação numa escola, trabalhou num laboratório de próteses dentárias, gostou muito mas as tarefas não tiveram continuidade por falta de verba dos empregadores. Completou em adulta o 6.º ano, mais tarde o 9.º nas Novas Oportunidades, fez depois os exames de acesso aos + de 23 e entrou, tal como a irmã Tânia. “Em criança gostava da escola mas morava muito longe, a minha mãe não tinha transporte e fiquei em casa. Aos 9 anos fazia uma panela de sopa para toda a família”. E é com as crianças que gostaria de trabalhar, para lhes poder passar o seu testemunho, com contrato efetivo.

A presidente da Ribalta Ambição é Tânia Oliveira, 36 anos, a irmã de Marisa, das três a que tem tido um trabalho mais continuado. Está há 15 anos em funções de mediação, atualmente na empresa municipal de habitação Figueira Domus, no âmbito de programa de emprego para a inserção. Diz, meio a brincar meio a sério: “Faço a descodificação da linguagem.” É nos bairros sociais que quer trabalhar, também defende o envolvimento na vida política, para lutarem pelos seus direitos.

A associação a que Tânia preside não se dirige exclusivamente à etnia. “Figueira da Foz a sorrir”, por exemplo, um projeto de higiene oral que apresentaram à autarquia com boas hipótese de ser implementado, destina-se a todas as crianças carenciadas. Figueira da Foz e Torres Vedras são as autarquias que consideram mais terem feito para a integração da comunidade.

Cheila Ribeiro, 27 anos, está separada e tem um filho, nasceu tinha ela 17 anos. O pai de Cheila é pastor evangélico – 59,1% dos ciganos pertencem à Igreja Evangélica da Filadélfia, segundo o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas.

É a mais assertiva das três, brinca que o seu dia tem mais de 24 horas tantas são as coisas que faz, desde miúda. “Não acabei a 4.ª classe, éramos quatro e eu era a mais velha, os meus pais trabalhavam na feira e tinha que haver alguém para tomar conta dos outros.” Voltou à escola no ano passado para se ingressar no Ensino Superior nos + de 23. “Eu a e Marisa metemo-nos neste curso empoderar os nossos jovens, para que eles se envolvam na política e lutem pelos seus direitos. Sou a sexta na lista do Bloco de Esquerda para a Freguesia de Tavarede.”

Não concorda com a existência dos bairros sociais, nem com os subsídios de subsistência. “Os bairros sociais são uma forma de manter as pessoas fechadas num espaço, não promovem a integração. E o Rendimento de Inserção Social (RSI) é um caramelo que dão aos pobres, somos escravos da pobreza”. Palavras duras de Cheila, mas são de alguém que viu as portas de emprego fecharem-se por ser cigana. Tem trabalhado em programas de mediação ou de inserção laboral, atividades temporárias. “Nem numa loja de chineses me aceitaram. Porquê? Fui dona de uma loja, fazia a receção da mercadoria, fecho e abertura da caixa, tudo.”

Cheila, Tânia e Marisa são o orgulho da família e de muitas mulheres ciganas, sobretudo das mães, ignoram quem desdenha na comunidade e, curiosamente, têm ouvido mais apoios por parte das mais velhas, sublinha a Marisa: “Têm 50 e 60 anos e dão o exemplo delas, não estudaram, viveram para a família e agora não têm condições , vivem do RSI”.

Elas demonstram que os agregados familiares ciganos estão a mudar. A Tânia é solteira, “e boa rapariga”, a Marisa é casada e não tem filhos, a Cheila é mãe separada. Não é isso que as afasta das tradições, muito menos das feiras. “Claro, é o passado da criança cigana, quase todas cresceram nas feiras.” Admiram o respeito pelos mais velhos – “não vê um cigano num lar” -, compreendem o dever das meninas “preservarem a honra” e o não saírem sem ser acompanhadas – têm as festas ciganas, onde “há música e alegria” – , o luto pela morte do companheiro, o que leva as mulheres a cortarem os longos cabelos e a vestirem-se de preto, para a vida.

Magistrada com pai na primeira fila

No dia em que Vânia Lourenço, 19 anos, presidir a um julgamento, é seguro que o pai, Ringo Lourenço, estará na primeira fila, com um grande sorriso e, talvez, algumas lágrimas. A menina é a filha do meio de quatro raparigas e é ele que a tem impulsionado para “seguir em frente”. Ela está no 1.º ano de Direito da Universidade Portucalense, quer seguir a magistratura. O verbo do pai é “ir”. “Se nos convidam, vamos, já fomos às escolas, vamos estar nas mesas de voto nas eleições autárquicas. Sempre as incentivei a estudar, a vida das feiras não é para elas, não têm ordenado, já não rende tanto, e eu sou uma pessoa bem integrada na sociedade”. E a Vânia gosta das feiras, “mas para passear”. “Não quero fazer vida da feira, levantar às 5 de manhã e, às vezes, nem ganhar para o gasóleo.”

Ringo conta uma história: “Ela tem o traje académico desde que entrou na Universidade. Foi o tio que o comprou, fez uma aposta com um cigano que dizia que ela não ia conseguir.” E a rapariga já tem convites de trabalho, assim conclua os estudos. “Vai concluir, não tem que ter complexos”, advoga o pai.

A filha mais velha de Ringo casou e tem uma filha, as mais novas do que a Vânia “estão bem encaminhadas nos estudos”. Ele saiu do bairro social há 24 anos, para morar em frente da escola primária onde as filhas iniciaram os estudos. Tem feito vida da feira, agora está desempregado, justifica que a saúde não o tem deixado trabalhar com continuidade, sofreu várias operações. Acompanha a filha para todo o lado, nomeadamente nas festas da universidade. Não achou piada às praxes.

Vânia aceita bem a companhia, agradece o entusiasmo, respeita os hábitos ciganos, não casará com um não cigano, mas não é nisso que pensa, garante: “Agora é o tempo para estudar.”

Esta reportagem foi publicada originalmente a 16 de setembro de 2017.

Fonte: Diário de Notícias


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